Há dezessete dias, me mudei para o Amazonas. Estou morando com minha família em uma pequena comunidade à beira de um lago e, definitivamente, a vida que conhecia até aqui ficou para trás. Tudo é muito, muito diferente- quase mesmo que o oposto.
Meu marido diz que se sente em casa, na portinha do paraíso.
Também me sinto assim, ainda que estejamos há pouquíssimo tempo vivendo aqui. A dinâmica dos dias nesta comunidade à beira de um lago, bem próximo ao rio Amazonas, tem tudo a ver com a gente. As pessoas, a natureza, o jeito de se viver e de se relacionar. Depois de me mudar tantas vezes nestes últimos anos, a impressão que fica é que realmente chegamos em casa.
Como é aqui…
Nossa nova casa é parte da base de Asas de Socorro– um local com algumas moradias, um hangar para aviões, oficinas, escritórios, um grande lago, muitas árvores e uma vida em comunidade. Viemos morar aqui para nos envolver de perto com o trabalho do Reino de Deus entre os amazonenses desenvolvido por Asas de Socorro.
Neste primeiro texto para o blog, vou contar um pouco sobre as pessoas que encontrei em meus primeiros dias de Amazonas e os fatos dos quais participei. De certa forma, eles são um pequeno retrato da vida aqui…
À beira do lago e no interior da vida
Um dos assuntos que sempre vêm à tona nas conversas que temos é a pandemia da Covid-19. Em meu primeiro dia de Amazonas, estava à beira do lago e comecei a conversar com um homem que mora na comunidade e é de Manaus. Ele me disse que sua esposa sofreu demais com a pandemia e começou a ter problemas psicológicos, sentindo muito medo e pavor. Coisas compreensíveis diante das perdas vividas em um dos estados onde morreram tantas pessoas, e que, por algum tempo, foi o epicentro mundial da pandemia do coronavírus.
Enquanto em minha família, que vive no sudeste, até agora não tivemos perdas causadas pela Covid-19, aqui, a pandemia deixou muitos sem seus amigos e familiares. Uma das famílias que mora na comunidade nos contou que, na família deles, 16 pessoas faleceram por covid durante a pandemia. Sete pessoas morreram durante a primeira onda, e nove durante a segunda onda de coronavírus.
Dá para imaginar? 16 pessoas da mesma família falecerem em um curto espaço de tempo por causa de uma única doença, que não permite despedidas, nem tratamentos? Triste demais. Uma dor que não consigo alcançar. Uma experiência que não posso explicar… parte da vida aqui no Amazonas… Um choro que muitos não viram, um grito de desespero que não escutamos … Graças a Deus, o Senhor viu e tudo sabe…
A esperança é que, apesar da dor, a vida continua para muitos e para nós. O desejo que fica é poder de alguma foram contribuir para a vida de alguns aqui do Amazonas, ser sensível a sua realidade e- ao ouvir sua dor e ver sua realidade- agir em prol de dias melhores para os que aqui vivem, nestes tempos de pandemia e também quando tudo isso passar.
Do sertão à floresta
Aqui, frequentemente temos almoços comunitários. Em um deles, conversei com um dos moradores e ele me contou sobre sua vida. Diferente de outros, ele não vem de Manaus ou de uma comunidade ribeirinha. Nasceu em um lugar seco e árido, pobre e distante. Acabou
vindo viver aqui depois de se casar e hoje desfruta de uma vida muito melhor do que poderia imaginar. Não há seca. Pelo contrário, aqui chove muito e estes dias têm chovido quase que diariamente- chuvas torrenciais que nos lembram o tão perto estamos de uma floresta tropical.
Muitas vezes, a vida tem caminhos surpreendentes e é muito melhor do que sequer poderíamos imaginar… do sertão, para a floresta, da solidão para a família, da morte para a vida…. nos caminhos do Senhor que são infinitamente melhores do que sequer podemos imaginar…
Futebol e comunidade
Diferente do que estou acostumada, a vida em comunidade, mesmo em tempos de pandemia, é cheia de variedades. Aqui, por exemplo, todas as tardes, alguns homens vêm jogar futebol. Eles moram em uma casa de recuperação para dependentes químicos que fica bem pertinho da base de Asas de Socorro em que estamos morando.
Como estão em isolamento, estes homens, de várias idades, podem vir jogar futebol aqui e meus filhos jogam com eles todas as tardes, mesmo sendo ainda adolescentes. Fico pensando que anteriormente meus filhos não jogariam
futebol com pessoas de uma casa de recuperação, mas, aqui, tudo é diferente e de alguma forma também todos somos iguais… tão bom viver o evangelho do amor e da inclusão na prática…
Trabalho
No hangar, onde fica a oficina e os escritórios, a rotina de trabalho é bem diferente daquela que acontece em minha casa ou à beira do lago. Lá, durante estes dias, os homens estão concertando um motor de uma lancha. Meu marido está ajudando e tem batalhado para o motor voltar a funcionar. Seria bom ter a lancha para visitar as comunidades ribeirinhas próximas e apoiar o trabalho desenvolvido junto às famílias ribeirinhas.
Os desafios que nos esperam são muitos, mas o desejo e o propósito de ser de alguma forma benção também são grandes…
Equipe
Temos uma equipe multifuncional aqui e nas terças feiras temos uma reunião com toda a equipe. Muitos projetos são desenvolvidos ao mesmo tempo nas comunidades ribeirinhas a partir desta base de Asas de Socorro em Manaus. Participei de uma reunião até agora. Os desafios para este ano são enormes. Em uma realidade de pandemia, alcançar os mais distantes não é tarefa fácil. Mas dia a dia as ações vão acontecendo e os projetos para as comunidades ribeirinhas tomando forma. Ao mesmo tempo, a comunidade local do bairro próximo à base também é alvo de atenção e de algumas ações de socorro e desenvolvimento.
Em um dos projetos a serem desenvolvidos, o alvo é a conscientização da comunidade de Manaus e da população ribeirinha sobre as medidas de proteção à covid-19. Faremos vídeos que incentivam a higiene das mãos e o distanciamento social, a partir de uma linguagem mais local.
Temos muitos desafios pela frente, mas estar vivendo em uma pequena comunidade à beira do lago e com amazonenses ajuda bastante.
Uma resposta inusitada
Outro dia, fui ao mercado próximo aqui e uma criança veio me pedir dinheiro. Eu e meu marido aproveitamos para conversar um pouco com ela e no meio da conversa perguntei para o pequeno garoto- “e o coronavírus, como está?”. Para minha supresa o menino me respondeu:
a senhora já viu o coronavírus?.
Sorrindo, respondi que não… e ele me disse então que também não o tinha visto…
Nunca imaginei que seria assim a resposta da criança à minha pergunta.
Surpreendi-me e percebi que há algo muito além e diferente dentro do coração e mente de alguns. O que nos resta é admirar, respeitar e aprender. Na beleza da vida, a diversidade é umas das preciosidades, não é mesmo?
Comunhão em época de pandemia
No domingo, passeamos de barco com as pessoas que moram aqui. Bem perto da comunidade, fica o rio Amazonas. A natureza é estonteante. A sensação que fica é que estamos mesmo perto do paraíso. E o desejo que dá é que sejamos usados para que a vida dos que sofrem também seja tão plena quanto o paraíso.
Temos muito pela frente…
Venham conosco…
E já ia me esquecendo– nestes dezessete dias aqui, descobri que o ventilador é um ótimo amigo! Nos dias e noites quentes, o ventilador faz tudo ficar mais fresco e possível, sendo ainda bem mais econômico que o ar condicionado, o que é essencial! Coisas simples que facilitam a vida… que sejamos assim, com o simples, facilitar um pouco a vida dos que têm sofrido aqui…
Rita Santos, jornalista e missionária de Asas de Socorro em Manaus, AM. Casada com Rodrigo e mãe de Vinícius, Noé e Yasmin.